Uma conversa sobre escolas e estilos
Por Arnaldo V. Carvalho*
Anos atrás, uma pessoa me ligou interessada em fazer um curso comigo. No meio do caminho ela afirmou já ser formada em Shiatsu, e quando lhe perguntei “qual estilo você pratica”, ela assumiu um tom de voz de surpresa, confusão e lançou: “Estilo?! Como assim? Faço Shiatsu ora!”. “Bem”, respondi eu, “é que há muitos tipos de Shiatsu e se você me situar o seu posso falar um pouco mais sobre o que o nosso curso pode ter a oferecer para você”. A pessoa simplesmente desligou o telefone.
Esse é o episódio comum no Brasil, e muitos praticantes somente descobrem que o universo do Shiatsu é bem maior do que aquele a que foi apresentado em um curso muito depois – quando descobrem. Na maioria das vezes, o primeiro contato com a existência de outras formas de praticar Shiatsu choca o profissional. Até porque o ser humano não costuma gostar de “saber por terceiros” de algo que aparentemente deveria lhe ter sido transmitido por quem o ensinou. Cabe aqui um exemplo verídico:
Certa vez um terapeuta de Shiatsu recém chegado do Japão me pediu orientação acerca de sua própria formação. Ele descobrira somente no Brasil a Teoria dos 5 elementos e diversas outras teorias da medicina oriental que não lhe foram apresentadas por sua professora japonesa. Sentia-se enganado por ela. Passou pelo período de acreditar que ou a Sensei não era preparada, ou negava-se a ensinar o que sabia. Procurei lhe explicar que há muitos caminhos para o bom Shiatsu, e no Japão não é mesmo comum o uso de algumas teorias da MTC, que aqui a maioria das escolas ensina. À medida que ia ampliando sua percepção, compreendeu mais sobre essa multiplicidade de técnicas aplicáveis pelos praticantes de Shiatsu.
O problema inclusive passa pelos próprios formadores. A realidade conhecida por vezes é pequena, e tomada como a única. Ouço com freqüência a defesa veemente, inclusive por profissionais experientes e influentes, que “Shiatsu é um só”. Trata-se de um discurso romântico, mas tal afirmativa só pode ser considerada após enfrentarmos algumas perguntas:
- Se Shiatsu é um só, qual seria então o “verdadeiro”? Seria a técnica que Masunaga ensina, usando a MTC e a palma das mãos na maior parte das pressões seria Shiatsu? Ou seria a técnica de Namikoshi, que ensina pontos e protocolos baseados na medicina ocidental? Ou o ainda Shiatsu seria o método Ko-ho, desenvolvido no seio das artes marciais? Quem sabe ainda o “Shiatsu que é um só” seria o do povo, o povo japonês que começou a trazer informalmente a técnica para o Brasil nas primeiras décadas do séc. XX? E se analisarmos o Shiatsu de cada uma dessas famílias que estabeleceram colônias aqui, veremos a utilização dos mesmos toques, pontos, pressões?
Para tantas questões há um argumento reducionista popular na boca de muitos profissionais da MTC: “Shiatsu é um pedaço do tui-na chinês, uma simplificação que os japoneses fizeram”. A afirmativa, mais uma vez, mostra o despreparo e/ou a falta de entendimento dos contextos históricos que acarretaram na criação do Shiatsu, no desenvolvimento dos estilos, e nas diferenças filosóficas, teóricas e práticas entre uma e outra técnica. Haver fortes pontos de contato entre as culturas chinesas e japonesas não indica que uma cultura plasma a outra simplesmente. Seria como dizer que a cultura brasileira é um mero desdobramento da portuguesa.
As tentativas de compreender o Shiatsu como um só até certo ponto buscam também criar unidade entre práticas com características muito próprias, muitas vezes distintas, que justifique nomear todas elas como Shiatsu. E, se ir aos meandros da história nos faz compreender a origem de cada desdobramento do Shiatsu, para enxergar os fatores que caracterizam cada um desses estilos, deveremos ir fundo em nossas investigações, e perceber o que une cada uma delas a uma só essência, o que torna enfim possível modos tão diferentes de pensar e agir ainda assim reunirem-se sob um só nome.
Para o propósito deste artigo, vamos nos limitar em dizer que quem conseguiu chegar a esse nível de investigação saberá, ao assistir pessoas a praticar Shiatsu, reconhecer a característica essencial e dirá, ainda que sua própria maneira de praticar seja bem distinta: “isso é Shiatsu”.
O Shiatsu de antes da Guerra
Shiatsu Tradicional: Esse nome será utilizado neste artigo para fins didáticos1. Possuidor da maior comunidade japonesa do mundo, o Brasil pode se orgulhar de ser hoje guardião de parte de uma cultura de cura japonesa, despedaçada pela derrota na II Guerra Mundial, violentada pela cultura americana imposta “a ferro quente”. As primeiras migrações japonesas trouxeram o Shiatsu para o Brasil muito cedo, e em primeiro momento, ele manteve-se praticado dentro das colônias, e transmitidas no âmbito familiar. Com a crescente interação dos japoneses com a cultura brasileira, esta aos poucos passou a ser popularizada na forma de tratamento, posteriormente ensinada – surgiam algumas das primeiras escolas de Shiatsu no Brasil. O Shiatsu tradicional é rodeado de especificidades a variar conforme a família e região de origem.
Ko-ho: O “método antigo” talvez seja representado no Brasil principalmente pela escola ABACO do Rio de Janeiro, fundada por Sohaku Bastos, monge e praticante de artes marciais. O Ko-ho tem sua história ligada a própria origem das artes marciais. O surgimento das escolas de artes marciais no Japão, na virada do séc. XIX para o XX, não se restringe a práticas de luta. A filosofia dessas artes eram (e são) brindadas com muitos ensinamentos xintoístas e do budismo e incorpora as práticas de saúde dos monges, dentre elas, o Shiatsu. Este método se aproxima bastante a Acupuntura na utilização dos conhecimentos da Medicina Tradicional Chinesa. Seu toque é bastante específico, seus métodos, protocolares. Há posturas corretas e além do polegar eles utilizam frequentemente os chamados “dedos arqueiros” (os três últimos dedos unidos).
Shiatsu Pós-Guerra: O divisor de águas
As técnicas mais famosas e praticadas no mundo hoje surgiram com a cultura do pós-guerra e polarizaram o Shiatsu. Uma tornou-se o “Shiatsu oficial” do Japão, e a outra correu o mundo ocidental para afirmar-se praticamente em contra-movimento ao “novo Shiatsu” japonês.
Shiatsu Namikoshi: Tokujiro Namikoshi, segundo o próprio, descobriu espontaneamente o seu Shiatsu ao tratar de sua mãe, ainda no início do séc. XX. Foi então estudar formalmente com Tamai Tampaku (autor do primeiro livro de Shiatsu do mundo), estudou anatomia, e fundou sua escola em Tóquio. Seu estilo não leva em conta as teorias dos meridianos, dos cinco elementos, etc., mas combinações de pontos, e protocolos para tratamentos diversos de saúde. Por uma combinação histórica de oportunidades, sua escola obteve o reconhecimento oficial do governo, e única que participa efetivamente no sistema integrado de saúde no Japão. Possui núcleos em diversos países e milhares de praticantes.
Zen Shiatsu (Escola Yokai): A técnica da escola de Shizuto Masunaga ficou conhecida em todo mundo a partir de seus seminários na Europa e nos EUA e do lançamento do livro “Zen Shiatsu” no ocidente. No Japão sua escola é a Yokai, que não utiliza a denominação “Zen” para seus cursos. Este nome, porém, se popularizou pelo mundo inteiro. Utiliza os meridianos, a teoria dos 5 elementos e do yin-yang, além do diganóstico do hara, do sistema mão mãe/ mão mensageira, e do conceito de Kyo / Jitsu.
A babel européia
Não podemos deixar de assinalar que nessa época a massa migratória japonesa em direção a Europa fundou escolas em seus diversos países. O Shiatsu ganhou contornos próprios de mestres tradicionais e seguiram desenvolvendo-se. Com o tempo, metabolizado pelos praticantes ocidentais, deram origem a diversas formas de Shiatsu (inclusive as que apresentaremos a seguir), algumas mais outras menos conhecidas. Muitas desses estilos conversam entre si, e há congressos internacionais todos os anos, a reunir europeus de toda a parte. De certa forma, a barreira da língua concentra o Shiatsu em blocos: Um bloco anglo-germânico, onde o intercâmbio acontece sobretudo entre suíços, ingleses e alemães; um mediterrâneo, entre espanhóis e italianos. A França parece viver um mundo a parte do Shiatsu, e os países do leste Europeu buscam nos diversos blocos fontes de inspiração mas seguem em desenvolvimento próprio.
Técnicas modernas
Ohashiatsu: Co-autor de “Zen Shiatsu”, Ohashi conta que nasceu com saúde muito frágil e o Shiatsu lhe devolveu a condição energética. Foi aluno de Masunaga, e após transferir-se para os EUA obteve grande sucesso, organizou seminários para seu professor, e tornou-se o autor mais profícuo e respeitado dos dias de hoje. Profundo conhecedor da medicina tradicional do Japão e do Zen Shiatsu, Ohashi seguiu se desenvolvendo a tal ponto que seu estilo tornou-se único, com uma série de técnicas exclusivas – surgia aí o “Ohashiatsu”. Entre tais técnicas, uma movimentação extremamente harmoniosa, não mecânica, e a defesa de que é muito importante o terapeuta sentir-se muito bem ao longo de toda a prática. O Brasil possui praticantes de Shiatsu e até onde sabemos um único brasileiro tornou-se habilitado em ensinar a técnica, o mineiro Marco Antônio Duarte.
Shiatsu dos Pés Descalços (Macrobiótico): Shizuko Yamamoto radicou-se na Inglaterra e tornou-se uma terapeuta de Shiatsu conhecida por lá. Adepta da Macrobiótica, ela utiliza em seu Shiatsu antigos preceitos de saúde japoneses, as idéias da macrobiótica, em parte influenciadas inclusive pela própria. Seu livro “Shiatsu dos Pés Descalços” é um Best seller no Brasil, embora sua técnica não tenha esse nome em outros lugares. Autores ingleses costumam se referir ao seu estilo como “Shiatsu Macrobiótico”.
Tao Shiatsu: O japonês Ryokyu Endo, após estudar com Namikoshi e Masunaga segue desenvolvendo-se até que funda o Tao Shiatsu. O principal foco de trabalho fica em torno da energia negativa (Jaki), que precisa ser liberada para o corpo recuperar seu equilíbrio vital. Endo acredita que o mundo moderno potencializou a “poluição energética humana”, e que o novo homem possui outros meridianos além dos antigos.
Técnicas contemporâneas
São inúmeras técnicas surgidas a partir dos anos 90. Vamos citar apenas algumas que já foram ensinadas e são praticadas em mais de um continente, incluindo com orgulho técnicas de três brasileiros.
Seiki Meridian Shiatsu (SMS): A consciência da “energia Seiki”, a centelha divina que habita em todos nós, precisa estar desperta, pois é dela que surge nosso poder curativo, nossa conexão com a Vida. É o que a técnica do israelense Tzvika Calisar se propõe a fazer. Utiliza, para isso, a idéia de conexão entre os interagentes a praticar a técnica, com o terapeuta utilizando sua própria centelha para regular a do outro.
Na América do Sul, seu principal representante é o belíssimo mestre Alejandro Cohen (Chile).
Shiatsu Emocional (ShEm Method): Desenvolvido por Arnaldo V. Carvalho, com influência de seus estudos no campo da pedagogia, neurociência, naturopatia, sociologia, psicoterapias (especialmente as de linha reichiana) e do pensamento oriental, possui uma série de premissas que o tornam diferenciados. Para Carvalho, os tratamentos ocorrem em diversos níveis: pessoal, familiar e social. No plano pessoal as emoções são percebidas como a interface entre o físico e o energético. As memórias emocionais constroem uma estrutura responsável por tornar o fluxo dos meridianos mais ou menos fluente. Os meridianos se relacionam com os segmentos psíquicos que geram couraças musculares. Os praticantes passam a dominar aspectos como o desenvolvimento da personalidade, a importância do período primal, o inconsciente, as situações transferenciais, e preparam-se para lidar com ab-reações, catarses, etc. Devem enxergar a relação terapêutica como capaz de produzir efeitos nos diversos níveis, como parte integrante de fenômenos inerentes a coletividade. A exploração dos cinco sentidos durante as sessões, a utilização do conceito de atividades extra-sessão, a utilização da conexão entre terapeuta-cliente-mundo, aqui chamada de conexão-totêmica, tudo isso a torna bastante diferenciada. As práticas levam em conta todos esses fatores, e buscam permitir a emersão de materiais inconscientes reprimidos, a regulagem efetiva do Ki através da liberação de tais materiais. Os planos familiares e sociais são discutidos e trabalhados através de intervenções cotidianas onde os praticantes assumem-se enquanto atores fundamentais no meio onde estão inseridos. A originalidade da técnica e a profundidade dos conhecimentos têm sido aproveitadas por profissionais de Shiatsu de diversas outras escolas e estilos.
Ki Shiatsu: Ainda sob batismo informal, esse é o nome de um estilo muito próprio desenvolvido pelo brasileiro radicado na Inglaterra Emerson Bastos. Emerson é querido e respeitado como terapeuta e professor onde quer que vá, e traz em sua técnica diversas contribuições ligadas ao tempo de espera, a relação terapeuta-cliente, a percepção das constelações familiares como parte dos processos energéticos ocorridos com os clientes, e diversos métodos e práticas aprendidas com grandes mestres do mundo inteiro, recombinados com intervenções por ele desenvolvidas. Bastos têm ensinado técnicas especiais de reestruturação energética, postural e outras em diversos países, que se encaixam perfeitamente nos vários modos de fazer Shiatsu.
Movement Shiatsu: Um dos fundadores da Sociedade Britânica de Shiatsu, Bill Palmer desenvolveu essa técnica através de pesquisas próprias. No Movement Shiatsu o cliente tem uma participação bastante ativa. A medida que o Shiatsu avança, são propostos pequenos exercícios, e o cliente tem a oportunidade de conscientizar-se do seu corpo, seus pontos a trabalhar, e o que vai acontecendo a medida que o Shiatsu atua.
Quantum Shiatsu: Pauline Sasaki, uma das principais formadoras do Ohashiatsu, enveredou-se pelos caminhos quânticos, e olhando para além da ilusão da Matrix, passou a ir direto aos pontos, sem necessidade de teorias complicadas. A compreensão profunda do pensamento quântico é subsídio para uma prática na qual o terapeuta é levado para um patamar de percepção extra-sensorial, acima da racionalidade limitante, podendo assim interagir diretamente com o campo energético do cliente, sua interação com o Todo, e enfim harmonizar.
“Ex” Shiatsus
Alguns praticantes rompem com aspectos considerados parte indivisível do Shiatsu, e criam terapias híbridas. Isso quer dizer que elas incorporam a essência do Shiatsu, mas já não se comunicam com este. Muitos consideram que já se tratam de técnicas distintas.
Tantsu e Watsu: Criações do americano Gerald Dull. O Tantsu, também chamado de “Shiatsu de Colo”, é uma forma de tratar onde o contato físico de terapeuta e cliente é bem mais intenso, maternal até. Já o Watsu é o famoso “Shiatsu na Água”, que reúne
Jahara technique: O brasileiro Mario Jahara Pradipto talvez tenha sido o autor mais popular do Zen Shiatsu nos anos 90. Experiente professor, criou dois livros belíssimos e didáticos2, flertando com a arte, ensaiando a percepção poética da técnica. Forte influência da escola de Gerald Dull. Mais tarde, na maturidade de sua técnica, Pradipto reúne seus conhecimentos aprendidos a muitas novas percepções próprias e cria um método conhecido em muitos países, mas especialmente nos EUA onde vive – Jahara Technique.
1.Leia também o artigo “Shiatsu Tradicional… Existe”? de Arnaldo V. Carvalho
2.Os livros são “Zen Shiatsu” e “Tao Shiatsu”.
* Arnaldo V. Carvalho é praticante e estudante de Shiatsu há quase duas décadas; percorreu diversos países aprendendo e ensinando a técnica, e atualmente dedica-se a promovê-la em seu país e desenvolver o intercâmbio entre seus praticantes. É membro da ABRASHI – Associação Brasileira de Shiatsu
Olá William, fico feliz que tenha republicado este artigo de minha autoria. Que possa ser útil na promoção e no aumento do conhecimento do Shiatsu. Um abraço, Arnaldo V. Carvalho
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